Guerra e Paz : Família encontra um lar no Paraná após ter casa destruída na Ucrânia 12/05/2023 - 07:25

Como é viver dividido? Ao contrário do que a ciência diz sobre coisas físicas, o coração consegue existir em dois lugares ao mesmo tempo. A família Slynko sabe bem o que é fazer essa “conta de dividir”. Em agosto de 2022, no mesmo dia em que descobrem que a casa foi destruída por bombardeios na Ucrânia, Dmytro, Ekatherina, Maria e Vitória encontram um novo lar em Jacarezinho, no Paraná.

Eles vieram de Kharkiv, uma das maiores cidades da Ucrânia, que foi devastada pela Guerra. A mudança para a nova casa, que fica no norte pioneiro paranaense, com pouco menos de 40 mil habitantes, se deu porque a família foi selecionada para o Programa de Acolhimento a Cientistas Ucranianos, promovido pela Fundação Araucária.

Os quatro chegaram de viagem recebidos por uma equipe da Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp), onde Dmytro irá pesquisar Direito Civil e Código Penal brasileiro. “Nós estamos muito felizes por estar aqui, porque é um lugar seguro. Nós vivíamos em Kharkiv e todos os dias havia bombas da ofensiva russa, por causa dessa guerra estúpida”, disse o Dmytro, nas suas primeiras palavras públicas em terras brasileiras.

A acolhida já mostrou a personalidade de cada um. O pai, educado e atencioso; a mãe, cuidadosa e preocupada com as filhas. As meninas ganham papel especial com personalidades distintas. A mais velha, Vitória, é tímida, mas sorridente. Maria, a filha caçula, não esconde o que sente - gargalha, olha com atenção para tudo, fala e abraça os pais.

Com a nova casa no Brasil, a rotina precisou também entrar nos eixos. Em 05 de setembro de 2022, a família conseguiu conhecer boa parte do que seria a escola das crianças. Os escombros das escolas da Ucrânia não destruíram a vontade sólida das filhas - principalmente a mais velha - em continuar os estudos. Desde o início da guerra, elas precisaram estudar de modo online, mas a vinda ao Brasil retoma a rotina de estudos presenciais. “Elas realmente querem muito começar e elas querem ir pra escola. Estão com medo, porque é um novo lugar, é uma nova escola, novos amigos, mas elas querem muito isso”, afirma Dmytro.

Ekaterina, mãe das meninas, também fala do momento difícil em que as filhas precisaram passar longe da escola. Sobre Vitória voltar a estudar presencialmente em um país estrangeiro, a mãe é enfática - pode ser assustador, mas é necessário. “Ela não está assustada agora, mas o momento é muito difícil, porque tudo é muito diferente”, conta.

O contato com crianças em um ambiente escolar era o primeiro depois de muito tempo para as meninas. Enquanto os pais conheciam a estrutura e planejamento pedagógico do Colégio, ambas puderam socializar com os alunos e brincar no parquinho do prédio. Ekaterina, mãe de Maria e Vitória, não deixou de reparar na felicidade das duas. “Quando eu vou para a escola?”, descrevia ela, sobre as insistentes perguntas da filha mais velha, ávida em retomar os estudos, interrompidos pela guerra.

A pergunta insistente da mais velha foi respondida algumas horas depois. A resposta veio logo após os quatro conhecerem mais sobre os livros didáticos oferecidos no colégio. Ao saber que o local seria, efetivamente, seu ambiente de estudos, Vitória deixou a timidez de lado para agradecer seus pais pela novidade. Não era necessário saber falar ucraniano para entender o “muito obrigada” dito em gestos pela filha.

Em meio aos risos, um barulho familiar. O sinal do colégio, que avisava sobre a hora do intervalo, soou similar às sirenes de um bombardeio, em cidades em estado de exceção. Por um breve momento, todos se calaram diante do som, que parecia anunciar o que aconteceria no dia seguinte para a família.

O dia que não acabou

A chuva caía torrencialmente na manhã seguinte. Junto com o sinal da escola, ela anunciava um momento triste para a família. Naquele dia, a casa de Kharkiv foi destruída por um bombardeio. Os quatro, acostumados a ter um coração dividido entre dois mundos, tiveram que ver seu lar acabado no mesmo dia em que iriam conhecer a futura casa no Brasil.

A casa fica do outro lado da rua em que as filhas estudam. Era o primeiro dia em que a família conhecia o novo lar, após confirmar o local de estudos das meninas, no dia anterior. Mas a felicidade precisou ser subtraída - o choro de Ekaterina não escondeu. Enquanto aguardavam para entrar na nova casa, a mãe  deixou as lágrimas caírem no mesmo ritmo da chuva.

“A nossa Ucrânia está se despedaçando [...] todo o tempo, todos os dias há bombas russas na nossa região. E eu não sei por que ”, dizia em prantos a mulher, já do lado de dentro da nova casa. Enquanto as crianças brincavam com os novos brinquedos, não dava para esconder a dor dos adultos. “A nossa região fala russo, nós somos muito próximos da Rússia. Nós vivemos, nós trabalhamos, temos as crianças e eles destroem nosso país”, dizia, enquanto as lágrimas caíam.

Kharkiv, ou Carcóvia em português, é uma cidade acostumada a estar dividida, assim como a família Slynko. A segunda maior cidade da Ucrânia fica a apenas 40 quilômetros da fronteira entre Europa e Rússia e é um local em que a maioria tem o Russo como língua materna. Durante a era soviética, a Carcóvia foi, entre outras coisas, centro da indústria armamentista. Ao decorrer dos anos, moradores testemunharam manifestações contra e a favor da independência da Ucrânia.

A família conhece a história da sua região e não deixa de se preocupar com a família que ficou no país. “[Nossos pais] Estão bem, estão em casa, mas a gente não sabe o que vai acontecer amanhã. Eu não sei. Eu sinto muito por estar chorando. É muito difícil para nós”, descreve Ekaterina. Mesmo com o medo e tristeza, o desejo de querer ajudar não desapareceu no coração da mãe. “Nós gostaríamos de estar lá para ajudar o nosso povo, para se voluntariar, mas eu tenho as minhas próprias crianças, então eu tive que sair para garantir que elas estivessem seguras”.

A fala acontece porque, mesmo em meio a conflitos, Ekaterina nunca parou de trabalhar na área de assistência social, no Centro Regional de Serviços Sociais de Kharkiv. No celular, a ucraniana mostrava orgulhosa as ações de distribuição de comida e medicamentos para famílias prejudicadas pela Guerra. “Para mim é muito difícil estar aqui e deixar para trás a população que precisa de ajuda”, descreve.

Ver a família - marido e filhas - segura não dissipa a preocupação. “Pessoas na nossa região não estão seguras, nossa família, nossos amigos e toda a população. Muitas pessoas perderam suas casas… É difícil para nós, porque a gente quer ajudar também”.

A primeira postagem depois do bombardeio na própria casa mostrava todos os cômodos destruídos, muita poeira e restos do que um dia abrigou uma família. Pelo celular, a família mostra o que deixou para trás para começar uma nova história no Brasil. Nas imagens, apareciam os colegas de trabalho, amigas, médicos e voluntários que ajudam pessoas com deficiência. “Eu trabalho com algumas crianças com deficiência, como essa aqui. Todos no nosso grupo têm um trabalho duro. Eu posso te mostrar esse vídeo, que é a nossa casa…”, mostrava Ekaterina.

A nova casa fica no andar de cima de um sobrado comercial. Basta subir alguns degraus de escada para adentrar no imóvel. Todo mobiliado, ele traz o ambiente aconchegante para a família. Mas o que é um lar? Para Dmytro, lar é a Ucrânia. “Onde nós nascemos eu acho que é um lar. Eu acredito que tudo vai ficar bem lá, mas não agora, no futuro”. Para Ekaterina, lar é alegria e segurança. “É onde a gente possa trabalhar, ter amigos e onde todos os dias tenha alegria. Para mim é isso que é um lar”, descreve.

Mas em Jacarezinho, o novo lar não terá os mesmos problemas e até apresenta novas soluções. Além de oferecer abrigo seguro para a família, ele fica em frente da nova escola das meninas. O mundo, tão grande e dividido para os quatro, preparou uma conta mais simples dessa vez: para estudar, basta atravessar a rua.

E foi isso que a família fez. Cruzou a rua para ir ao Colégio, pouco tempo depois de receber a notícia da destruição da casa em Kharkiv. Desta vez, não deixaram a casa por um longo período, mas momentaneamente para levar a filha para a aula; não ficarão longe do lar, pois ele fica logo ali; não temem a destruição, pois o novo lar é acolhedor.

 

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War and Peace: Family finds home in Paraná after having house destroyed in Ukraine

 

What is it like to live divided? Contrary to what science says about physical things, the heart can be in two places simultaneously. The Slynko family knows how to do this “dividing calculation”. In August 2022, on the same day they discover that their house has been destroyed by bombings in Ukraine, Dmytro, Ekatherina, Maria and Vitória found a new home in Jacarezinho, Paraná.

They came from Kharkiv, one of the biggest cities in Ukraine, which was devastated by the war. The move to the new house, which is located in the pioneering north of Paraná, with just under 40.000 inhabitants, happened because the family was selected for the Welcoming Program for Ukrainian Scientists, promoted by the Araucaria Foundation.

They arrived from the trip welcomed by a team from the State University of Northern Paraná (Uenp), where Dmytro will research Civil Law and the Brazilian Penal Code. “We are very happy to be here because it is a safe place. We lived in Kharkiv and every day there were bombs from the Russian offensive, because of this stupid war”, said Dmytro, in his first public words on Brazilian soil.

The reception already showed the personality of each one. The father, polite and attentive; the mother, careful and concerned about her daughters. The girls play a special role with distinct personalities. The oldest, Vitória, is shy, but smiling. Maria, the younger daughter, doesn’t hide what she feels - she laughs, looks carefully at everything, speaks what she wants and hugs her parents.

With the new home in Brazil, the routine also needed to get back on track. On September 5, 2022, the family got to know the children's school. The rubble of Ukraine's schools didn’t destroy the solid will of the daughters - especially the eldest - to continue their studies. Since the beginning of the war, they had to study online, but coming to Brazil resumes the routine of face-to-face studies. “They really want to start and they want to go to school. They're scared, because it's a new place, it's a new school, new friends, but they really want this”, says Dmytro.

Ekaterina, Dmytro’s wife, also talks about the difficult time her daughters had to spend away from school. About Vitória going back to school in a foreign country, the mother is emphatic - it can be scary, but it is necessary. “She is not scared now, but the moment is very difficult, because everything is very different”, she says.

This is the first contact with other children in a school environment after a long time, for the girls. While the parents were getting familiar with the College's structure and pedagogical planning, both were able to socialize with the students and play in the building's playground. Ekaterina, Maria and Vitória’s mom, didn’t fail to notice their happiness. “When do I go to school?”, she remembered the insistent questions of her eldest daughter, eager to return to her studies, interrupted by the war.

The answer to that question came a few hours later, after the four learned more about the textbooks offered at the school. Upon knowing that the College would effectively be her place of study, Vitória left her shyness aside to thank her parents

for the news. It was not necessary to know how to speak Ukrainian to understand the “thank you” said in gestures by the daughter.

Amidst the laughter, a familiar noise. The school bell, which warned about break time, sounded similar to the sirens of a bombing, in cities in a exception’s state. For a brief moment, everyone fell silent before the sound, which seemed to announce what would happen in the next day for the family.

The day that didn't end

Rain fell torrentially the next morning. Along with the school sign, it heralded a sad time for the family. That day, Dmytro's house in Kharkiv was destroyed by a bomb. The four of them, used to having their hearts divided between two worlds, had to see their home destroyed on the same day they were going to visit their future home in Brazil.

Located on the second floor of a commercial building, the house is on the other side of the street where the daughters would study. It was the first time that the family visited the new home, after confirming the girl’s school the day before. But happiness had to be interrupted - Ekaterina's cry didn’t hide. As they waited to enter the new house, the mother let the tears fall with the rain.

“Our Ukraine is falling apart [...]. Every day there are Russian bombs in our region. And I don't know why”, the woman said in tears, already inside the new house. As the children played with the new toys, it was impossible to hide the parent's pain. “Our region speaks Russian, we are very close to Russia. We live, we work, we have children and they are destroying our country”, she said, as the tears fell on her face.

Kharkiv is a city used to being divided, just like the Slynko family. The second largest city in Ukraine is just 40 kilometers from the border between Europe and Russia and is a place where most people speak Russian as their mother language. During the Soviet era, Kharkov was, among other things, the center of the arms industry. Over the years, residents have witnessed demonstrations for and against Ukrainian independence.

The family knows the history of their region and is concerned about the family that stayed in the country. “[Our parents] are fine, they are at home, but we don't know what will happen tomorrow. I don't know. I'm sorry for crying. It is very difficult for us”, describes Ekaterina. Even with the fear and sadness, the desire to help did not disappear in the mother's heart. "We would love to be there to help our people, to volunteer, but I have kids of my own so I had to go out and make sure they were safe".

The speech happens because, even in the midst of conflicts, Ekaterina never stopped working in social assistance, at the Regional Center of Social Services in Kharkiv. On her phone, the Ukrainian proudly showed the actions of distributing food and medicine to families harmed by the War. “For me it is very difficult to be here and leave behind the population that needs help”, she describes.

Seeing the family - husband and daughters - safe doesn’t dispel the worry. “People in our region aren’t safe, our family, our friends and the entire population. Many people have lost their homes… it‘s difficult for us, because we want to help too”.

The first post after the bombing in their house showed all the rooms destroyed, a lot of dust and wreckage of what once housed a family. The family shows what they left behind to start a new story in Brazil. In the images, it’s possible to see co-workers, friends, doctors and volunteers who help people with disabilities. “I work with some children with disabilities, like this one. Everyone in our group has a hard job. I can show you this video, which is our home…”, showed Ekaterina.

The new house is fully furnished, it brings a cozy atmosphere to the family. But is it a home? For Dmytro, home is Ukraine. “Where we were born I think it's home. I believe everything will be fine there, but not now… maybe in the future.” For Ekaterina, home is joy and security. “It's where we can work, have friends and where we have joy every day. For me, that is what home is”, she says.

But in Jacarezinho, their home won’t have the same problems and even can present new solutions. As well as providing safe shelter for the family, it’s adjacent to the girls' new school. The world, so big and divided for the four of them, prepared a simpler calculation this time: to study, just cross the street.

And that's what the family did. They crossed the street to go to the College shortly after receiving the news of the destruction of the house in Kharkiv. This time they didn't leave the house for an extended period, but momentarily to take their daughter to class; they will not be far from home, ‘cause it’s right there; they do not fear destruction, ‘cause the new home is welcoming.

 

Créditos: 

Texto: Jéssica Natal - UEPG

Fotos: Jéssica Natal e Luciane Navarro - UEPG.

 

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