Projeto de prevenção à violência contra a mulher leva ações educativas à comunidade por meio de exposição de roupas das vítimas 29/08/2023 - 16:32

Uma jovem vestida com camiseta branca de algodão, de mangas curtas e gola redonda, composta com saia jeans, também de algodão, pode fazer muitas coisas e ir a vários lugares. Talvez passear no shopping com amigas, buscar o lanche da tarde na padaria da esquina, ir à aula na universidade, quem sabe assistir o lançamento da semana no cinema mais próximo ou mesmo brincar com os sobrinhos preferidos no clube, durante uma tarde inteira. Pois há quem tenha sido estuprada e, não bastando, também prévia e cruelmente ‘condenada’, pelo tribunal inquisitório do senso comum, por estar vestida dessa maneira. 

Ao tomar conhecimento da dor que originou o relato da “moça da saia de algodão” e de outros tantos, as pesquisadoras Jen Brockman e Mary A. Wyandt-Hiebert, diretoras do Centro de Educação e Prevenção de Agressão Sexual, da Universidade do Kansas, nos Estados Unidos, criaram, em 2013, a exposição What you were wearing?

Por aqui, a bióloga Marcela Teixeira Godoy, professora da rede pública estadual, há mais de duas décadas, e da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), desde 2006, trabalhava em sala de aula temas envolvidos com sexualidade e questões relacionadas, emprestando ouvidos e compaixão a alunas e alunos do ensino médio, vítimas de violência sexual. Por meio de uma aluna da pós-graduação, Marcela soube do projeto norte-americano e entrou em contato com as pesquisadoras. Inspirada e autorizada por Jen e Mary-Wyandt, ela começou a formar uma rede de proteção com voluntários entre 2017 e 2018, criando, em agosto do ano seguinte, o projeto de extensão “O que você estava vestindo?” (a tradução do inglês da iniciativa norte-americana), que envolve uma exposição de arte-sobrevivente e intervenções, que levam à comunidade conhecimentos para enfrentar e prevenir a violência sexual. Em 2023, o projeto conta com o apoio da Fundação Araucária (FA) por meio do edital do Programa Mulheres Paranaenses: Empoderamento e Liderança. Conta com duas bolsistas da FA, Tauane Roldan Mollo e Manú Moriá.

Um iceberg do tamanho do mundo

Segundo Marcela, pós-doutora em Ensino de Ciências e Educação Matemática, a violência sexual é a ponta do iceberg. A base, muito maior, é a cultura que alimenta, banaliza e naturaliza a agressão sexual e corporal, sempre atreladas uma à outra, especialmente em se tratando da mulher. Daí o desconcertante impacto provocado pela exposição das roupas que as vítimas estavam usando no momento em que sofreram violência, acompanhadas de fragmentos de suas falas. A trivialidade das peças e a absoluta irrelevância como provocadoras da agressão são chocantes. 

Este texto poderia acabar aqui, tão cortantes são as imagens e dolorosos os relatos. Mas é preciso falar, mais e sempre, sobre a chaga de culpar a vítima sobre a violência sofrida, sempre a opção mais fácil, cruel e inútil de enfrentar a aflição maior: o abuso de um corpo que só pertence a quem o conduz. Além de, convenientemente, desviar a atenção do agressor, como se o problema fosse impor, e não ultrapassar limites. 

Com dois objetivos bem definidos, o projeto “O que você estava vestindo?” propõe-se a aproximar as vítimas da paz, ressignificando suas histórias, e provocar reflexões e conscientização nos visitantes. Terá mesmo uma roupa tamanho poder? Antes de provocar os visitantes e outros participantes do projeto, Marcela entrevistou as vítimas dos abusos. Era preciso alcançar essas pessoas e fazer com que contassem suas histórias, revelando os detalhes nunca apagados da memória. No primeiro momento, o maior desafio era encontrar as vítimas. A professora informou num grupo de whatsapp: “quem já sofreu violência me chame no privado que eu estou com um projeto da UEPG de apoio”. O celular nunca mais parou. “Mal sabia eu que a violência estava do meu lado, o tempo inteiro”, confessa ela. Ainda hoje, aonde vai e começa a falar do projeto, alguém anseia por “ouvidos de ouvir”. 

Para dar conta da grande e intensa demanda, Marcela convidou profissionais parceiros para integrar-se ao projeto. Foi preciso criar antes uma rede de apoio que pudesse oferecer atendimento psicológico, jurídico e de assistência social a quem precisasse e quisesse. “Assim que tive contato com as histórias das primeiras vítimas, eu pegava uma peça de roupa, o projeto e ia batendo de porta em porta. O bacana é que realmente se aproximaram pessoas que entenderam a real dimensão e a grandeza do objetivo”, diz ela.  

O que Marcela desconhecia até então é que ela mesma precisava se fortalecer para sustentar-se diante de tantas histórias de sofrimento. Seguindo orientação de uma das psicólogas ligadas ao projeto e sua amiga pessoal, ela reduziu a frequência das entrevistas com as vítimas, que passaram a ser semanais em vez de diárias, e começou a fazer terapia. O autocuidado ganhou lugar no projeto, que inclui a exposição e intervenções, oportunidades nas quais a equipe conversa com os visitantes e desmistifica estereótipos tortuosamente construídos. 

Histórias sem fim, culpa com os dias contados

As primeiras participantes do projeto, aquelas contatadas por meio do grupo de whatsapp, trouxeram conhecidos próximos para compartilhar os infortúnios causados por quem olha para um corpo e enxerga mero objeto à disposição dos instintos mais selvagens. E, hoje, há relatos e indumentárias de pessoas de todos os gêneros, idades, classes sociais e religiões, indistintamente. 

Os casos das vítimas mais nova e mais velha que integram a exposição chegaram até Marcela por meio da psicóloga criminal do Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente (Nucria), de Ponta Grossa, Simone Sanson, em uma das parcerias firmadas pelo projeto. A mais nova, um bebê de três meses. A mais velha, uma senhora de 85 anos, abusada pelo genro. “Eu posso ler esses relatos e ver essas roupas 100 mil vezes que meu estômago vai embrulhar 100 mil vezes”, diz Marcela. Não queira saber como está o meu, prezado leitor, só em saber desses casos.

De forma a desculpabilizar as vítimas, entram em cena os círculos restaurativos, uma das faces da extensão do projeto. O interessante é que muitas delas, avessas a essa nomenclatura, sentem-se aliviadas pelo simples fato de falarem sobre o ocorrido e serem ouvidas sem julgamento. Outras demandam processos terapêuticos demorados, que não impedem a tomada de decisões práticas, como encerrar relacionamentos abusivos. “Uma delas falou que gostaria de estudar. Ela não sabia nem onde ir, que documentos levar. Com a nossa orientação, ela concluiu o ensino médio e é caloura da UEPG, neste semestre. São histórias como essa que nos dão ânimo”, conta Marcela.  

As frestas de luz como essa ajudam a suportar o espantoso. O momento mais difícil enfrentado pela coordenadora desde que resolveu expor a violência em forma de camisetas e vestidos foi tão inusitado como libertador. Segundo Marcela, uma amiga de infância, advogada de formação, pediu para participar do projeto. “Eu falei ‘venha, estamos precisando de advogada’. E ela respondeu que gostaria de contar a própria história. Eu caí das pernas”. Foi aí que ela soube que a amiga, filha de pais separados, fora abusada pelo pai dos 8 aos 12 anos, nos fins de semana em que passava com ele.  

Isso foi em 2019, ano da primeira edição da exposição, realizada na galeria de arte da Proex, da UEPG. A advogada fez questão de participar e descobriu que o processo de buscar peças semelhantes às que vestia nos piores dias de sua meninice foi similar à escolha das roupas para o corpo que aguarda ser vestido, velado e enterrado. “Foi um ritual de morte e, ao mesmo tempo, de homenagem à menininha que havia suportado tudo aquilo”, diz Marcela. 

Renascida, a advogada foi uma das 27 vítimas presentes à abertura da exposição, e em meio ao público presente, incluindo sua mãe, disse as palavras até hoje repetidas nas oficinas com os meninos e meninas do projeto: “antes eu tinha uma ferida, aberta e exposta, que doía e sangrava. Hoje eu tenho uma cicatriz. Não dói, não abre, mas eu sei que está aqui”. 

Espelho, espelho meu…

Montar uma exposição como a do projeto liderado por Marcela demandou muito mais  comprometimento do que simplesmente dispor variadas peças de roupas em araras ou varais. Foi preciso firmar mais uma valorosa parceria, desta vez com os professores Adriana Rodrigues Suarez, Nelson Silva Júnior e Sandra Borsoi, do curso de Artes Visuais, que assumiram a curadoria e estabeleceram critérios condizentes com o tema e o propósito. Há todo um estudo e uma poética que fundamentam cada espaço da exposição.  Embora o acervo seja composto por centenas de indumentárias, cada exposição tem no máximo 27, dependendo do espaço de circulação do local escolhido. 

No ano passado, o projeto esteve, por duas vezes, na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), levando a exposição e as intervenções educativas a funcionários e pesquisadores. Em julho deste ano, a exposição foi montada na Estação de Arte, de Ponta Grossa, próxima ao terminal de ônibus, e recebeu fluxo diverso e expressivo durante o mês. As peças foram intencionalmente dispostas de forma a permitir aos participantes da formação sobre a maneira de agir em casos de violência, realizada na última semana, sentir a violência bem próxima, ao redor. “A agressão não está na tevê, está debaixo do nosso nariz. Pasme: 86% dos casos acontece na família e 92% com pessoas conhecidas. O projeto quebra o mito que existe no imaginário das pessoas de que apenas o tarado da rua vai te pegar”, atesta Marcela. Infelizmente, esses números não são estatísticas soltas e desconexas. A maioria das participantes do projeto “O que você estava vestindo?” foi abusada na infância.

De acordo com Marcela, o contato visual com as peças provoca nas pessoas um misto de reações. Há quem desvie o olhar inquieto, quem demonstre desconforto e quem se identifica a ponto de transbordar o que passou consigo. A coordenadora relembra o caso de uma visitante, jovem, que contou o abuso sofrido para a psicóloga que a acompanhava há dois anos depois de ver a exposição. O resultado foi que acabou a síndrome do pânico, a ansiedade e a ojeriza à relação sexual. Liberta do peso de uma culpa que não era dela, a garota envolveu-se amorosamente, tornou-se mãe e, atualmente, contribui com o projeto, compartilhando sua história com outras meninas destroçadas e desesperançosas. “Essas pessoas podem acreditar que tudo de errado na vida delas é por causa do que sofreram. É um fardo enorme e injusto”, avalia Marcela. Importante dizer que todos os participantes têm a identidade preservada, assinam um Termo de Compromisso Livre e Esclarecido e podem pedir para sair do projeto a qualquer momento.

Sem julgar, sem cobrar, sem pressionar, por meio de muito estudo, responsabilidade para com as vítimas e conhecimento, a bióloga e sua pequena equipe estendem os braços para quem quiser e conseguir encarar a ferida até que cicatrize. Conciliações, rompimentos definitivos, prisão, não importa. Cada pequeno passo para desfazer as amarras que limitam a vida em plenitude é um grande passo. Seja de tênis, sandália, bota ou com os dois pés bem calçados no chão. Sempre em frente. 

Não é Não

Durante a produção desta matéria, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 3/23, que cria o chamado Protocolo “Não é Não”. O documento tem como objetivo prevenir a violência contra a mulher em casas noturnas, boates e casas de espetáculos. Aliás, uma reportagem produzida pelo jornalista da Câmara, Luiz Gustavo Xavier, registra que, “desde 2019, foram aprovados 84 projetos e 216 atos legais que apoiam as mulheres e mudam para melhor sua realidade econômica, política e social no País”.

O Protocolo “Não é Não”, aprovado no dia 1 de agosto, previne o constrangimento e a violência contra mulheres em ambientes que vendem bebidas alcoólicas. A iniciativa é inspirada no que existe na cidade de Barcelona, na Espanha, conhecida como “No Callem”. Ela foi aplicada no episódio que resultou na prisão do jogador de futebol brasileiro Daniel Alves, preso por estuprar uma mulher em uma boate daquela cidade. O esportista foi acusado formalmente no dia 2 de agosto, pela Justiça espanhola pelo crime de agressão sexual e continua preso em Barcelona.

Fonte: conexaociencia.com.br